Desde quando oficializei a Coleção Grimaldi e transformei uma simples coleção de música brasileira em um acervo de referência e reconhecido, estabeleci uma meta:
- "Tentarei reunir música brasileira e/ou artistas nacionais gravados em todos os suportes de mídia possíveis."
Será que afinal consegui?
Acredito que sim, graças ao meu amigo e colecionador Andreas Triantafyllou.
Devido ao nível de raridade, o único formato que ainda me faltava era o cilindro fonográfico, pois – desde o desaparecimento dos poucos da coleção Humberto Franceschi – apenas três exemplares sobreviventes são ainda conhecidos.
Mas qual a razão de serem tão raros?
O primeiro suporte com música brasileira gravada para comercialização foi de fato o cilindro, mais especificamente o de cera marrom.
No final do século XIX, tanto a Casa Edison sob o comando de Fred Figner, quanto outras casas concorrentes e de menor tamanho, iniciaram a gravação e comercialização da cena musical Carioca através desses cilindros.
Como os cilindros de cera marrom não podiam ser duplicados ou produzidos em massa, cada um deles precisava ser gravado um por vez, cada um com uma interpretação diferente.
Apesar de depois ter existido um método rudimentar de duplicação, a produção ainda era precária e lenta, sendo que precisavam ser duplicados também em tempo de execução, ou seja, cada cilindro demorava o tempo da reprodução de seu conteúdo para ser copiado.
Uma característica do cilindro de cera marrom era a possibilidade de regravação: Os cilindros eram raspados, polidos e gravados novamente, ou seja, foram analogamente os avôs do já antigo CD-RW.
Na época, na devolução de seu cilindro já gravado, o consumidor obtinha um desconto na compra de um novo cilindro no mesmo mecanismo das trocas de cascos de garrafas que temos hoje.
E todos os cilindros devolvidos eram raspados e regravados.
Como a cada raspagem ocorria um afinamento da superfície de cera, os cilindros iam ficando cada vez mais frágeis até atingir o ponto de quebra e descarte definitivo.
Levando em consideração os descontos na devolução dos cilindros, fragilidade e afinamento do material, regravações constantes e mais de um século, acreditava-se que nenhum cilindro de cera marrom gravado no Brasil havia sobrevivido ao tempo.
Pois Andreas provou o contrário: Encontrou – juntos – dois sobreviventes, ambos comercializados pela Casa Edison de São Paulo.
Sabendo da existência deles, decidi que precisava de um para o meu acervo.
Aproveitando uma ida minha a São Paulo, visitei meu amigo Andreas e, após horas de conversa e uma extensa negociação, realizei meu objetivo.
Andreas ficou com o cilindro que exibe no rótulo o fonograma “Bacalhau na Negra” sem dados de intérprete.
Eu fiquei com um idêntico, mas com fonograma e intérprete até então indecifráveis.
Antes que perguntem: Não, não é possível a reprodução desses cilindros.
A cera marrom reage quimicamente ao mofo dos algodões de proteção dos estojos dos cilindros.
A cera acaba esbranquiçada, porosa e ainda mais quebradiça, se transformando em uma espécie de “fóssil musical”, servindo apenas como prova de existência e objeto de exposição.
Pois bem, após semanas de análise, vamos às conclusões:
O fonograma “Bacalhau na Negra” é inédito e consta em catálogo da Casa Edison como sendo de 1922, tendo o famoso Bahiano como intérprete.
Como os dois cilindros foram encontrados juntos, precisamos gravitar ao redor desse período.
Com análise infravermelha do rótulo do estojo do meu cilindro, consegui decifrar o centro da escrita: “Música Proibita”, obra italiana de autoria de Stanislao Gastaldon.
Também com análise infravermelha da tampa do estojo pude verificar as palavras “Valsa” e “Angústias”.
A única valsa de nome semelhante gravada no período seria “Angústias de Amor” de 1916, de autoria e interpretação do Grupo do Canhoto – também inédita – com a possibilidade das duas serem uma só, pois ocorriam variações de identificação dos fonogramas em novas gravações, ainda por cima em um cilindro de cera marrom com identificações escritas à mão.
Temos aqui algumas hipóteses: Podemos ter o Grupo do Canhoto interpretando música brasileira ou estrangeira ou algum outro intérprete brasileiro interpretando música brasileira ou estrangeira.
Mas o fato aqui irrefutável é o de termos um cilindro gravado no Brasil por intérprete brasileiro.
Mas ainda existia um mercado de cilindros após a consolidação do disco?
Estranhamente sim.
Ainda havia alguns donos de fonógrafos que precisavam de material para consumo e é aqui que fechamos a cronologia.
No início do século XX, já com o mercado de discos em atividade, Fred Figner consegue uma parceria com a fabricante de cilindros francesa Phrynis para a produção de cilindros brasileiros pré-moldados, da mesma forma como os discos eram feitos: Matrizes gravadas aqui no Rio de Janeiro, produção européia e comercialização local após importação.
Como a qualidade e durabilidade dos cilindros pré-moldados era superior aos de cera marrom, o mercado dos últimos ficou restrito às pequenas casas concorrentes.
Após a perda de interesse do mercado por cilindros e o encerramento da comercialização de cilindros pré-moldados, coube aos cilindros de cera marrom atenderem ao mercado e à demanda cada vez menores do final da década de 1910 e início da década de 1920.
Graças à dedução de data do cilindro do Andreas podemos agora compreender melhor um dos fatores mais importantes para a sobrevivência dos dois exemplares: Não houve mais interesse, os abandonaram, o mercado havia acabado e por isso não os rasparam até o enfraquecimento e fatídica quebra.
Um assunto específico e muito técnico é insuportável para muitos, mas de suma importância para a história da música brasileira, pois – até onde se sabe – apenas esses dois cilindros de cera marrom e de produção brasileira sobreviveram.
No mundo.
O terceiro cilindro que citei anteriormente é um dos Phrynis pré-moldados que se encontra no acervo de uma universidade norte americana, a USCB.
Edouard Pécourt, um prolífico colecionador de cilindros de todas as partes do mundo, doou o seu acervo para esta universidade, e – por acaso – lá estava ele, o único cilindro pré-moldado brasileiro do qual se tem notícia atualmente.
O grande Humberto Franceschi possuía cerca de quatro ou cinco cilindros pré-moldados brasileiros que – como eu havia citado anteriormente – simplesmente desapareceram após o seu falecimento, não constando nem no acervo do IMS e nem no de qualquer outra instituição.
Falando no próprio, nem ele acreditava na sobrevivência de um cilindro de cera marrom de produção brasileira.
Infelizmente não deu tempo de compartilharmos da mesma felicidade.