Inauguro aqui o projeto Brasiliana Musical com um conteúdo batizado pelo meu querido e amado amigo Ruy Castro.
Desde o final de 2019 até o início deste ano de 2023, houve a dissolução em doses homeopáticas de uma das mais impressionantes coleções históricas de música brasileira que se tenha tido notícia.
Fechada e encaixotada por cerca de meio século nos porões empoeirados de uma casa na Zona Norte do Rio de Janeiro, foi liquidada em sete disputadíssimos leilões dos quais participei.
Contando com mais de 15.000 peças como partituras, livros, manuscritos, instrumentos musicais, rolos de piano, cilindros, acetatos e – é claro – discos, nunca uma concentração de tantos itens considerados perdidos ou impossíveis havia sido vista.
Durante pouco mais de três anos movi mundos e fundos para realizar o objetivo de manter o “ouro” deste acervo unido e sob a minha curadoria.
Com a exceção de poucas peças importantes – mas ainda disponíveis – atingi a meta e aos poucos irei trazendo a público itens que agora integram o meu acervo.
Em comemoração aos 150 anos de nascimento de Alberto Santos Dumont, trago aqui uma das “joias da coroa” adquiridas nessa jornada.
Curiosamente este disco se torna ainda mais especial pois foi arrematado justo no dia do meu casamento, logo antes da cerimônia.
Acompanhei boa parte do leilão enquanto me arrumava para casar, chegando a levar o celular para dentro do chuveiro.
Mas bem, vamos ao que interessa:
Disco Zon-O-Phone – X-621 10″ – 1902/1903
Fonograma: Santos Dumont (A Conquista do Ar) Compositor: Eduardo das Neves Intérprete: Bahiano Acompanhamento: Piano (Desconhecido)
Gravado no segundo semestre de 1902 – sob o teto de zinco do estúdio improvisado nos fundos da Casa Edison, Rua do Ouvidor n° 105 – e lançado provavelmente no final de 1902 ou início de 1903.
A demora entre gravação e lançamento se dava pelo fato da cera de gravação ser registrada no Rio de Janeiro e o disco ser fabricado na Alemanha.
Estudiosos disseram por anos que a marcha foi composta em 1903 em celebração à visita de Santos Dumont ao Brasil, mas isso seria impossível.
Apenas duas sessões de gravação pelo selo Zon-O-Phone foram realizadas para a Casa Edison, uma no início de 1902 e outra na metade do mesmo ano.
A marcha foi composta provavelmente após o dia 19 de outubro de 1901, dia no qual Santos Dumont vence o desafio proposto pelo empresário Henry Deutsch, ofertando uma recompensa para o primeiro piloto que conseguisse contornar a Torre Eiffel e voltasse ao seu ponto de partida em trinta minutos.
Eduardo das Neves – assim como outros compositores da época – elaborava canções com temas da atualidade, que estavam “na boca do povo”, para que fossem mais rentáveis e bem sucedidas.
Logo, concluo que tenha sido composta no final de 1901 e editada imediatamente em partituras, o que era de praxe na época.
Eduardo das Neves pegou o gancho do acontecimento e compôs uma canção ufanista originalmente batizada como “A Conquista do Ar”, mas ficando conhecida popularmente apenas como “Santos Dumont”, assim aparecendo grafada na maioria das vezes desde então.
Como o mercado de partituras era um termômetro dos sucessos musicais, a canção se tornou um fenômeno durante o primeiro semestre de 1902 e foi selecionada para ser registrada na grande novidade experimental da época: o disco fonográfico.
Durante o mesmo período de gravação foi registrada uma versão instrumental pela Banda da Casa Edison, que nada mais era do que a Banda do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro sob a batuta do maestro Anacleto de Medeiros.
Da versão instrumental nenhum disco foi até então localizado, restando apenas as informações em catálogo de época.
Da versão que trago aqui, anos atrás um áudio digitalizado de fonte desconhecida chegou aos arquivos do querido Miguel Ângelo de Azevedo – o Nirez – áudio esse que hoje é público e integra a coleção do IMS.
Porém um disco e o respectivo selo jamais haviam sido vistos.
Com isso, ao menos duas das supostas 250 cópias prensadas ainda existem, sobrevivendo por 120 anos.
Ruy publicou hoje – 09/09/2023 – uma coluna na Folha de São Paulo sobre o assunto, a qual trago transcrita abaixo:
A volta do disco impossível
Colecionador arremata por R$ 535,50 um exemplar de ‘Santos Dumont’, perdido há 120 anos
Em 1901, Alberto Santos-Dumont contornou a torre Eiffel num dirigível com motor a gasolina, decolando e pousando no mesmo lugar, à vista de atônitos especialistas, jornalistas e do povo de Paris. Nunca tinha sido feito. Dois anos depois, no dia 7 de setembro de 1903, Santos-Dumont desembarcou do navio no porto no Rio e, embora ainda estivesse a três anos de voar no 14-Bis, já tinha aura de herói. Uma multidão foi recebê-lo. Alpinistas estenderam uma faixa no Pão de Açúcar para saudá-lo. E o querido palhaço e compositor Eduardo das Neves homenageou-o com a marcha “Santos Dumont”.
Disco original, em 78 rpm, da marcha “Santos Dumont”, de Eduardo das Neves, gravado em 1902 para a Casa Edison – Cristiano Grimaldi
Em 1903, aurora da música gravada, pouquíssimas pessoas tinham vitrola. A aceitação popular de uma música dependia das partituras para piano, com suas tiragens de milhares. Mesmo assim, o disco “Santos Dumont”, gravado em 78 rpm pela Casa Edison, do Rio, e fabricado na Alemanha para o selo Zon-O-Phone, em 1902, cantado pelo famoso Bahiano, foi um sucesso. Devem ter sido prensadas 250 cópias, que eram a média na época. E que fim levaram esses discos? Foram escutados, amados e desapareceram.
Qualquer disco de 78 rpm, não importa de quando, tem baixa expectativa de vida. Está sujeito a arranhões, mofo, desgaste por agulhas rombudas, empenar, trincar e, claro, quebrar. Seu habitat, se sobrevivente, é o abandono em velhos armários, entre fungos, baratas e ratos. O último 78 produzido no Brasil foi em 1964. Imagine um disco de 1903.
Uma versão digitalizada de “Santos Dumont”, de origem desconhecida, chegou um dia ao pesquisador cearense Nirez e está hoje nos arquivos do IMS. Mas nem Nirez nem seus colegas nunca viram o disco em si, o impossível objeto de 120 anos. Pois acaba de aparecer um exemplar num leilão aqui no Rio, saído de uma coleção que passou 50 anos fechada. Foi arrematado pelo colecionador Cristiano Grimaldi por R$ 535,50.
Equivale a comprar um chapéu do aviador por esse preço.
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, é membro da Academia Brasileira de Letras.